quinta-feira, 2 de setembro de 2010

AS MINHAS MÃOS (Crônica de Paulo Sant'Ana)

    "ara que vos quero, para que me servis,
minhas mãos, se já não posso tocar convosco
nem mais uma ilusão ou sonho?
    Tristes mãos minhas, que não mais acariciam
nem possuem mais a coragem de colher uma
flor!
    Mãos já incapazes de empunhar uma bandeira,
sequer de afagar um cão.
    Para que servis, minhas mãos, que antes tantas
obras forjastes?
    Hoje mal que tremulamente ofereceis uma
esmola.
    Ainda bem que nunca se tingiram de sangue
nem jamais se entregaram ao ócio. O que no entanto
exijo de vós, mãos minhas, é que desmascareis os
hipócritas e surreis os impostores.

    Tanto estou a desconfiar de vós, minhas mãos
enfastiadas, que temo que estejais dispostas
eventualmente a dar tapinhas nas costas dos
poderosos iníquos.
    Para que servis hoje, minhas mãos decagonais,
senão para arroubos de lascívia?
    Temo até que deixastes, minhas mãos, de ser
esperançosas nos vossos acenos de adeus.
    Mãos caídas, impotentes já para esplêndidos
gestos de aceite ou de recusa.

    Vós vos finastes, minhas mãos. Talvez até para
os abraços sinceros. Nunca mais vos atrevestes
à poesia dos empurrões e das mãos dadas nas rodas
de ciranda do colégio infantil.
    Se só me servis para escrever, é escassa vossa
serventia: eu precisaria de vós, minhas mãos, mais
do que para ideias, precisaria para grandes atitudes.
Como a de, por exemplo, enfrentar o poder nas
mãos dos maus.
    Mãos arrasadas perto do que fostes, decepcionantes
perto do que prometíeis.
    Olho para minhas mãos e não acredito que elas
existam, como se me restasse ser uma Vênus de
Milo.

    Fito minhas mãos e vejo que nada mais cresce
nelas, exceto minhas unhas.
    Reagi, mãos minhas! Talvez ainda hoje haja tempo
para grandes obras.
    Atirai para longe - depressa que o tempo é curto
- este destino de desencantos e amargores.
    Talvez ainda haja ensejo, minhas mãos, para mudar
o que pode ser transformado.
    Livrai-vos, minhas mãos, dos entraves das vossas
luvas, que vos tiram a força, o jeito e a impetuosidade,
além de tornarem vossos dedos insensíveis.
    Cruzai os teus dedos e que este enlace de oração
vos leve novamente a produzir carinho e cuidados nas
crianças e no ideal, além de estapear as desonras.
    Mãos em que um dia depositei toda minha esperança
e fé, voltai depressa a ser desprendidas, corajosas e
realizadoras.
    Livrai-vos dessa paralisia e dessas impurezas e tentai
como antes, mais uma vez, vos agarrar à cauda luminosa
do cometa do otimismo.""

   
  (Crônica de Paulo Sant'Ana -
    publicada na Zero Hora - Terça-Feira,
    dia 31 de agosto de 2010).




 

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