Longa noite da inteligência
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- Publicado em Domingo, 03 Junho 2012 18:37
- Escrito por Olavo de Carvalho
Se há uma coisa que, quanto mais você perde, menos sente falta dela, é a
inteligência. Uso a palavra não no sentido vulgar de habilidadezinhas
mensuráveis, mas no de percepção da realidade. Quanto menos você
percebe, menos percebe que não percebe.
Quase que invariavelmente, a perda vem por isso acompanhada de um
sentimento de plenitude, de segurança, quase de infalibilidade. É claro:
quanto mais burro você fica, menos atina com as contradições e
dificuldades, e tudo lhe parece explicável em meia dúzia de palavras. Se
as palavras vêm com a chancela da intelligentzia falante, então, meu
filho, nada mais no mundo pode se opor à força avassaladora dos chavões
que, num estalar de dedos, respondem a todas as perguntas, dirimem todas
as dúvidas e instalam, com soberana tranqüilidade, o império do
consenso final.
Refiro-me especialmente a expressões como "desigualdade social",
"diversidade", "fundamentalismo", "direitos", "extremismo",
"intolerância", "tortura", "medieval", "racismo", "ditadura", "crença
religiosa" e similares. O leitor pode, se quiser, completar o repertório
mediante breve consulta às seções de opinião da chamada "grande
imprensa".
Na mais ousada das hipóteses, não passam de uns vinte ou trinta
vocábulos. Existe algo, entre os céus e a terra, que esses termos não
exprimam com perfeição, não expliquem nos seus mais mínimos detalhes,
não transmutem em conclusões inabaláveis que só um louco ousaria
contestar? Em torno deles gira a mente brasileira hoje em dia, incapaz
de conceber o que quer que esteja para além do que esse exíguo
vocabulário pode abranger.
O
Brasil, que já produziu Jorge Amado, Graciliano Ramos e Machado de
Assis, entre outros, encontra-se atualmente em estado de indigência no
que diz respeito à literatura.
Que essas certezas sejam ostentadas por pessoas que ao mesmo tempo
fazem profissão de fé relativista e até mesmo neguem peremptoriamente a
existência de verdades objetivas, eis uma prova suplementar daquilo que
eu vinha dizendo: quanto menos você entende, menos entende que não
entende.
Ao inverso da economia, onde vigora o princípio da escassez, na esfera
da inteligência rege o princípio da abundância: quanto mais falta, mais
dá a impressão de que sobra. A estupidez completa, se tão sublime ideal
se pudesse atingir, corresponderia assim à plena autossatisfação
universal.
O mais eloquente indício é o fato de que, num país onde há trinta anos
não se publica um romance, uma novela, uma peça de teatro que valha a
pena ler, ninguém dê pela falta de uma coisa outrora tão abundante, tão
rica nestas plagas, que era a – como se chamava mesmo? – "literatura".
Digo que essa entidade sumiu porque – creiam – não cesso de procurá-la.
Vasculho catálogos de editoras, reviro a internet em busca de sites
literários, leio dezenas de obras de ficção e poesias que seus autores
têm o sadismo de me enviar, e no fim das contas encontrei o quê? Nada.
Tudo é monstruosamente bobo, vazio, presunçoso e escrito em língua de
orangotangos. No máximo aponta aqui e ali algum talento anêmico, que
para vingar precisaria ainda de muita leitura, experiência da vida e uns
bons tabefes.
Mas, assim como não vejo nenhuma obra de literatura imaginativa que
mereça atenção, muito menos deparo, nas resenhas de jornais e nas
revistas "de cultura" que não cessam de aparecer, com alguém que se dê
conta do descalabro, do supremo escândalo intelectual que é um país de
quase duzentos milhões de habitantes, com uma universidade em cada
esquina, sem nenhuma literatura superior.
Ninguém se mostra assustado, ninguém reclama, ninguém diz um "ai".
Todos parecem sentir que a casa está na mais perfeita ordem, e alguns
até são loucos o bastante para acreditar que o grande sinal de saúde
cultural do país são eles próprios. Pois não houve até um ministro da
Cultura que assegurou estar a nossa produção cultural atravessando um
dos seus momentos mais brilhantes, mais criativos? Media, decerto, pelo
número de shows de funk.
Estão vendo como, no reino da inteligência, a escassez é abundância?
Mas o pior não é a penúria quantitativa. Da Independência até os anos
70 do século 20, a história social e psicológica do Brasil aparecia,
translúcida, na literatura nacional. Lendo os livros de Machado de
Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto, Antônio de Alcântara Machado,
Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Marques Rebelo, José
Geraldo Vieira, Ciro dos Anjos, Octávio de Faria, Anníbal M. Machado e
tantos outros, obtínhamos a imagem vívida da experiência de ser
brasileiro, refletida com toda a variedade das suas manifestações
regionais e de época e com toda a complexidade das relações entre alma e
História, indivíduo e sociedade.
A partir da década de 80, a literatura brasileira desaparece. A
complexa e rica imagem da vida nacional que se via nas obras dos
melhores escritores é então substituída por um sistema de estereótipos,
vulgares e mecânicos até o desespero, infinitamente repetidos pela TV,
pelo jornalismo, pelos livros didáticos e pelos discursos dos políticos.
No mesmo período, o Brasil sofreu mudanças histórico-culturais
avassaladoras, que, sem o testemunho da literatura, não podem se
integrar no imaginário coletivo nem muito menos tornar-se objeto de
reflexão. Foram trinta anos de metamorfoses vividas em um estado de sono
hipnótico, talvez irrecuperáveis para sempre.
O tom de certeza definitiva com que qualquer bobagem politicamente
correta se apresenta hoje como o nec plus ultra da inteligência humana
jamais teria se tornado possível sem esse longo período de
entorpecimento e de trevas, essa longa noite da inteligência, ao fim da
qual estava perdida a simples capacidade de discernir entre o normal e o
aberrante, o sensato e o absurdo, a obviedade gritante e o ilogismo
impenetrável.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
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